Do aeroporto de Punta Arenas a Puerto Natales viemos por uma estrada de vento rumo ao céu, uma estrada toda céu, interminável numa planura cinzenta. Como um risco que segue em frente, sempre em frente, a direito, rumo a coisa nenhuma. Ovelhas, avestruzes, cavalos pastam aqui e ali nos campos, separados por quilómetros. Os bichos têm o mesmo ar desolado da paisagem. A estrada é plana, boa mas a carrinha não pode arriscar-se a mais de 100 km por causa do vento que a empura para fora da estrada. Dario conhece o vento, trá-lo tatuado na cara escura. Uma rajada sacode a carrinha, Dario endireita a direcção, o vento volta, dá um pontapé mesmo a meio, Dario, paciente, puxa a carrinha para a estrada. O jogo prossegue nos 350 quilómetros da viagem. Como um pulso de ferro: Dario agarrado ao volante a tentar antecipar o golpe do vento e nós seguindo ali dentro, embalados, olhando pelos vidros a paisagem monótona. Terra plana, erva rasteira dobrada pelo vento, de vez em quando árvores espectrais cobertas de líquenes que crescem e se agitam ao vento,"barbas de abuelo", aponta Dario. Tehuelche é o único povoação que fica entre entre as duas cidades: uma terra esquecida de casas castanhas com telhado verde, ou brancas com telhado preto ou amarelo, ou azul... Todas pequenas, de chapa, mesmo a igreja, a escola, e a estrada a passar-lhes ao lado. Lá atrás ficou uma enorme mancha líquida. "Lo Estrecho de Magallanes". Dario é de poucas palavras mas indica com o queixo a água cinza, o mar nevoento, que parece qualquer coisa distante e sólida. E nós tentados a explicar que Magallanes se diz Magalhães e era português...Depois, à medida que Puerto Nateles se aproxima volta a água, outro braço de mar, o Seno Ultima Esperanza, onde os cisne de pescoço preto se baloiçam.
Wednesday, January 10, 2007
Do aeroporto de Punta Arenas a Puerto Natales viemos por uma estrada de vento rumo ao céu, uma estrada toda céu, interminável numa planura cinzenta. Como um risco que segue em frente, sempre em frente, a direito, rumo a coisa nenhuma. Ovelhas, avestruzes, cavalos pastam aqui e ali nos campos, separados por quilómetros. Os bichos têm o mesmo ar desolado da paisagem. A estrada é plana, boa mas a carrinha não pode arriscar-se a mais de 100 km por causa do vento que a empura para fora da estrada. Dario conhece o vento, trá-lo tatuado na cara escura. Uma rajada sacode a carrinha, Dario endireita a direcção, o vento volta, dá um pontapé mesmo a meio, Dario, paciente, puxa a carrinha para a estrada. O jogo prossegue nos 350 quilómetros da viagem. Como um pulso de ferro: Dario agarrado ao volante a tentar antecipar o golpe do vento e nós seguindo ali dentro, embalados, olhando pelos vidros a paisagem monótona. Terra plana, erva rasteira dobrada pelo vento, de vez em quando árvores espectrais cobertas de líquenes que crescem e se agitam ao vento,"barbas de abuelo", aponta Dario. Tehuelche é o único povoação que fica entre entre as duas cidades: uma terra esquecida de casas castanhas com telhado verde, ou brancas com telhado preto ou amarelo, ou azul... Todas pequenas, de chapa, mesmo a igreja, a escola, e a estrada a passar-lhes ao lado. Lá atrás ficou uma enorme mancha líquida. "Lo Estrecho de Magallanes". Dario é de poucas palavras mas indica com o queixo a água cinza, o mar nevoento, que parece qualquer coisa distante e sólida. E nós tentados a explicar que Magallanes se diz Magalhães e era português...Depois, à medida que Puerto Nateles se aproxima volta a água, outro braço de mar, o Seno Ultima Esperanza, onde os cisne de pescoço preto se baloiçam.
Tuesday, January 09, 2007
Providência é um bairro cosmopolita de Santiago. Avenidas largas, árvores, passeios limpos, gente endinheirada que caminha entre o trânsito frenético. Há uma barulho demencial na cidade mas ninguém parece reparar. Leio os jornais sentada num banco de uma avenida e depois de uns segundos também me alheio do barulho. Jovens de calções passeiam-se pela cidade de livro debaixo do braço e o ar de quem tem todo o tempo do mundo. O rio Mapuche é um leito de lama que vai engrossando à medida que o dia avança e o sol ganha calor para derreter as neves dos Andes. Há o barulho.... o barulho como pano de fundo.
Percebe-se pelos bairros modernos o tamanho da cidade. Como se todo o Chile aqui vivesse (mas isso vou descobri-lo depois). O metro é um moderno labirinto só disponível para alguns e nas ruas o ondular das gentes é igual ao de qualquer cidade em hora de ponta. A meio de uma Avenida, a faixa separadora está atapetada com fotocópias de fotografias a preto e branco de rostos que, pela fraca qualidade da imagem, se parecem todos. São os desaparecidos do regime de Pinochet. Há quem lute contra a impunidade e queira ver esses crimes castigados. Pinochet ainda estava vivo (foi há quase um ano) mas ninguém esperava verdadeiramente vê-lo no banco dos réus. Em contrapartida La Tercera, o jornal mais lido, perdia espaço na primeira página a contar as aventuras da filha do ditador nas terras do tio Sam.
É em dias de sol como este que mais me custa imaginar o silêncio a que foram condenados os injustiçados e as suas família. Olho os rostos de quem passa e não consigo ver neles um fundo de medo que os explique nem uma revolta que os cegue.
Michèle Bachete ganhou ontem as eleições. Uma mulher à frente do Chile é também uma imagem de exportação.
Monday, January 08, 2007
Os poetas sabem que as mulheres são casas e que as casas são mulheres. Habitam-se, deixam-se habitar e acolhem, abrigam, protegem. Mesmo as mulheres que o não fazem trazem nelas a promessa de um abrigo.
Das três casas do poetas - Chascona, Sebastiana e a Isla Negra - duas têm evocam mulheres.
A de Valparaíso, Sebastiana, pendurada num morro sobre o mar, a de Santiago, Chascona, secreta , virada para dentro de si, e a da Isla Negra, uma casa banhada pelo Pacífico e onde o mar não se cansa de bater. A Isla Negra (na imagem), onde o poeta e a mulher estão sepultados, exibe bem as saudades que um morto pode ter da Terra.Toda a gente sabe que o Capitão adorava barcos mas tinha um medo tenebroso do mar, toda a gente sabe que o poeta coleccionava carrancas de proa, conchas, instrumentos musicais, garrafas e um sem fim de outras coisas. Toda a gente sabe isso mas é preciso estar ali, na Isla Negra, olhar aquele mar que se estende escuro entre pinheiros e pedras e ouvir a voz funda de Neruda:"O Oceano Pacífico saía do mapa. Não havia onde pô-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em sítio nenhum. Por isso o deixaram em frente da minha janela."
Dizia isto mas olhar as ondas lhe bastava. No areal que se espraia à frente da casa está encalhado no cimento duro um barco que Neruda transformou em bar. Convidava os amigos para beber uns copos a bordo e quando o álcool fazia o seu efeito o poeta sentia-se então no mar alto em dia de tempestade.Essas épicas bebedeiras foram o mais próximo que esteve do conhecimento prático dos mares.
Sunday, January 07, 2007
Neruda sentava-se num cadeirão baixo frente a uma janela escancarada sobre os telhados de Valparaíso, puxava a sua caneta de tinta verde, uma folha de papel e escrevia::
Valparaíso
que disparatado
és,
que louco,
porto louco,
que cabeça
com montes,
desgrenhada,
não consegues nunca
pentear-te,
nem vestir-te,
a vida
sempre
te surpreendeu,
sempre
te acordou a morte,
em camisa,
de compridas ceroulas
com franjas coloridas,
despido
com um nome
tatuado na barriga,
e de chapéu,
o terramoto apanhou-te,
correste
enlouquecido,
(...)
derrubar-te
não pôde,
porque no teu peito austral
estão tatuadas
a luta,
a esperança,
a solidariedade
e a alegria
como âncoras
que resistem
às ondas da terra.
Depois, subia com dificuldade as escadas estreitas e espreitava outra vez a cidade pelo óculo redondo de vidro riscado que trouxera de um navio qualquer.
No estofo esbranquiçado do cadeirão ficaram até hoje as manchas de tinta verde.
Não acredito que algum dia tenham lá vivido os marinheiros de sorriso dourado, as putas de lábios sensuais e grande tetas redondas ou os endinheirados burgueses dos barcos. Valparaíso deve ter sido sempre alguma coisa mais individual e secreta, uma cidade onde tudo escorrega para o porto e um imenso porto de onde nasce o barulho para o mundo. Percorri as ruas em busca da casa do poeta, desci nos ascensores de madeira com carris pendurados em traves de madeira fina, vi o casario pintado em cores ingénuas, ouvi o canto da sereia que se escapa do porto e percebi porque alguém chamou a esta cidade Paraíso.
A primeira vez que fui ao Chile tinha acabado de fazer 13 anos. Ficou-me pouca coisa dessa viagem que anotei no diário numa frase curta escrita a 11 de Setembro de 1973. Fixei o Chile ao ouvir da revolução que tinha derrubado Allende no seu palácio e, passado pouco tempo, li um livro comprado pela beleza da capa, onde planava uma gaivota. Chama-se Confesso que Vivi e fora escrito por Pablo Neruda. Jurei visitar aquele país de gente esquecida, os que viviam nos Invernos eternos do sul, invisíveis pelos nevoeiros e as neves, e os outros, os da cidade que misturava gente de todas as origens, e os do Norte, do deserto. O Chile era para mim um país pasto de solidões e essa ideia era-me querida. Na adolescência é-se romântico sem se saber e a solidão dos contemplativos assenta-nos melhor do que umas calças de ganga.
Mais de trinta anos depois, aterro numa cidade sitiada pela Cordilheira, uma cidade afundada em nevoeiros poluentes, de gente vária. Pousei a bagagem no Hotel Neruda e fui até ao Palácio de La Moneda cumprir o primeiro dos passos a que me havia proposto tantos anos antes. Posei frente da estátua de Salvador Allende e dei por mim a pensar que, nem por um segundo, duvidei estar ali um dia. Aprendi nesse dia que o Mundo é do tamanho dos nossos sonhos e das nossas vontades.
Saturday, January 06, 2007
Os Andes, que vão marcar esta viagem pela forma como dividem modos de vida, surgem de repente, do alto do avião. Perdemos a visão macia dos campos lisos e verdes, a arrumação das simetrias argentinas e, de repente, surge um dorso de animal mitológico que se estende numa imensidão imemorial. Covas e serros acastanhados com neves eternas, uma superfície rugosa e solitária onde não se vê mais nada do que um descascado dorso de animal que se estende pelo continente. Na América do Sul há sempre mais uma país: a Cordilheira, uma imensa construção ocre, um resto de um esqueleto de um animal inventado pelos deuses e de que só restam as vertebras secas semeadas até ao fim do mundo.
O Atlântico aqui não é aquela superfície esverdeada que deixei ao pé de casa. Visto daqui parece um bolo raso coberto de creme de acúçar. Há espuma que rebenta em camadas sobre a superfície da água fria numa extensão larga. Visto da costa, o mar é branco. Azul só o céu. Necochea é uma praia a sul de Mar Del Plata, um cochicho de praia se comparada com a outra, conhecida pelo mundo. A água é fria, o Verão fresco, o vento constante. Acabada de aterrar no Verão, trago ainda nos ossos o frio do Janeiro europeu e a humidade da serra de Sintra. Olho para a praia imensa, para o mar vazio, as dunas onde passeiam moto4 como formigas, jipes que enchem o areal escuro e se fecham em círculo, quais caravanas do Oeste. Bebo mate, bebo mates, o amargo, (o que bebe a gente rija do sul) e o doce (bebida risível, dizem os que vivem na Patagónia, para desmerecer os porteños que o bebem com dedicação). Provo um e outro sem saber da distinção. Aponto o amargo como o predilecto e logo, nesse gesto, desenho um risco que separa o sul do norte, os que vivem esquecidos nas solidões patagónicas varridas pelo vento e os urbanos de Buenos Aires. Ficamos espalhados nas cadeiras, dispostas em círculo, a beber mate no areal, com o termo da água quente a rodar e a caneca do mate a passar de mão em mão "sempre pela direita". Escuto o que me dizem, as explicações da bebida que gostei logo no primeiro golo. Depois avanço pela beira-mar e vou molhar os pés na água fria. Não há ninguém na água. Não há ninguém a olhar o mar. A caravana dos jipes enrolada no círculo que encerra o outro círculo de cadeiras vira as costas ao mar. É de lá que sopra o vento que levanta a areia. Necochea é a primeira paragem de dias, na Argentina.
Thursday, January 04, 2007
Quando se viaja, o que se leva é tão importante como o que se deixa ficar. Deve levar-se pouca coisa e deixar atrás coisa nenhuma. Não devemos deixar traços da nossa existência quando nos decidimos a partir. Mas isso nem sempre é possível. Enchemos a mochila, a mala, a cabeça sem darmos por isso. Deixamos atrás de nós afectos que nos hão-de receber com a mesma estranheza com que nos viram partir um dia.
Quando fiz o saco para a grande viagem, tive dois cuidados: levar pouco peso e deixar gravada na máquina fotográfica a imagem mais recente de quem me ficou a aguardar em casa. Só depois disso, meti os pés ao caminho.